quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Histórias de amor

"Já viste isto? – perguntou ele a olhar para o céu. – Nem a merda de um hambúrguer sei fazer, deves estar agarrada à barriga aí em cima a rir da minha desgraça. Também nunca me tinhas avisado de que a carne ficava preta. Que merda. Atirou a panela para o lava-louças, que estava tão cheio que já não se via a janela.
-Bela partida que me pregaste, Maria. Ensinaste-me a ser menino, e toda a gente sabe que os meninos não se viram sozinhos. Podias ter esperado mais um pouco por mim e íamos os dois. Tanta vez que esperei que te aprontasses para os bailes, horas de seca plantado naquela cadeira e tu não podias esperar por mim para morrer? Vá-se lá entender as mulheres. As pessoas aqui da rua cumprimentam-me com pena, não sei se é só por teres partido ou se é pela barba que deixei crescer e pelos fatos tão amarrotados que parecem folhas de jornal. Se calhar é por tudo isto, mas pouco importa. Não vale a pena enganar as pessoas, a verdade é que estou na merda. E ai de ti que refiles pela quantidade de palavrões que utilizo nos dias que correm, não me resta mais nada. É que estou mesmo na merda, isto sem ti é insuportável. Ouviste? Insuportável. Não estou preparado para isto. Os miúdos vêm cá a casa e perguntam-me se me tenho alimentado. Que disparate. Eu aceno que sim só para não os preocupar, mas porque raio é que eu me havia de alimentar? Sou um puto xarila sem norte nem sorte, a andar nesta casa à tua procura dentro das gavetas e dos armários. Quarenta e cinco anos, quarenta e cinco anos que passaram em segundos. Abriram o portão cá de casa e o tempo saiu a correr, correu tão depressa que nem o vi passar e de repente quarenta e cinco anos. As pessoas acham que eu tive tempo para me preparar para isto. Que engraçado, que puta de piada que isso tem. Como se alguém estivesse preparado para viver sem respirar, que bela teoria. Nos últimos tempos, sim agora sei que foram os últimos, dizias muitas vezes “António, quando eu me for vais-te tornar um bajoujo.” Eu ria-me da parvoíce para te descansar e por dentro sentia um arrepio de fazer tremer o mundo. Eu sabia que tinhas razão. Estás sempre certa, ouviste? É incrível que até depois de me deixares continuas a estar certa.
Eu estava habituado a ouvir-te perguntar “tens fome amor?” mal me ouvias fechar a porta, e eu tinha sempre fome. Depois dobravas a minha roupa impecavelmente e deixavas os sapatos aos pés da

cama. Todos os dias. Desculpa, enganei-me, eu não estava habituado porque o hábito tem a tendência a matar o encanto e o amor. Eu vivia era encantado a olhar para ti. É importante que saibas isso. Nos quarenta e cinco anos em que te amei, não houve no meu corpo um único segundo de dúvida ou de desamor, o amor todos os dias crescia… Todos os dias cresce. A criançada achava que eu estava preparado para isto. As pessoas acham que com o tempo e a velhice deixamos de amar e passamos só a ser bons companheiros. Nós nunca fomos assim. Sempre te desejei, só a ti. O meu corpo tremia como primeiro dia, sempre que te sentavas na cama e tiravas o colar do pescoço para te deitares perto de mim. Cheiravas a amêndoas, será que ainda cheiras a amêndoas aí em cima? Tenho a certeza de que sim, às vezes quando chove sinto que ainda cheira amêndoas. Olho para o céu e rio-me. “Lá estás tu a fazer das tuas”. Nunca me senti menos sortudo. Sempre que chegava a casa e te via a cozinhar, ficava perdido na linha que vai do teu ombro ao teu pescoço… Como é possível Deus ter feito uma coisa tão perfeita e ainda haver gente que não tem fé? A paz cabia nas tuas mãos e ainda havia espaço para mim.
Agora vou-me deitar, espero que tenhas a decência de me levar contigo… Se não for hoje, que seja depressa. Se não for hoje que desças ao menos para dançarmos a última valsa, traz o vestido das bolinhas que eu adoro e que tu dizes que te faz as ancas largas. Mal sabes tu que és a coisa mais bonita da minha vida.
Minha Maria, tenho um nó na garganta e um nó mal feito na gravata, que bajoujo que eu sou sem ti."

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