"Já viste isto? – perguntou ele a olhar para o céu. – Nem a merda de um
hambúrguer sei fazer, deves estar agarrada à barriga aí em cima a rir da
minha desgraça. Também nunca me tinhas avisado de que a carne ficava
preta. Que merda. Atirou a panela para o lava-louças, que estava tão
cheio que já não se via a janela.
-Bela partida que me pregaste,
Maria. Ensinaste-me a ser menino, e toda a gente sabe que os meninos não
se viram sozinhos. Podias ter esperado mais um pouco por mim e íamos os
dois. Tanta vez que esperei que te aprontasses para os bailes, horas de
seca plantado naquela cadeira e tu não podias esperar por mim para
morrer? Vá-se lá entender as mulheres. As pessoas aqui da rua
cumprimentam-me com pena, não sei se é só por teres partido ou se é pela
barba que deixei crescer e pelos fatos tão amarrotados que parecem
folhas de jornal. Se calhar é por tudo isto, mas pouco importa. Não vale
a pena enganar as pessoas, a verdade é que estou na merda. E ai de ti
que refiles pela quantidade de palavrões que utilizo nos dias que
correm, não me resta mais nada. É que estou mesmo na merda, isto sem ti é
insuportável. Ouviste? Insuportável. Não estou preparado para isto. Os
miúdos vêm cá a casa e perguntam-me se me tenho alimentado. Que
disparate. Eu aceno que sim só para não os preocupar, mas porque raio é
que eu me havia de alimentar? Sou um puto xarila sem norte nem sorte, a
andar nesta casa à tua procura dentro das gavetas e dos armários.
Quarenta e cinco anos, quarenta e cinco anos que passaram em segundos.
Abriram o portão cá de casa e o tempo saiu a correr, correu tão depressa
que nem o vi passar e de repente quarenta e cinco anos. As pessoas
acham que eu tive tempo para me preparar para isto. Que engraçado, que
puta de piada que isso tem. Como se alguém estivesse preparado para
viver sem respirar, que bela teoria. Nos últimos tempos, sim agora sei
que foram os últimos, dizias muitas vezes “António, quando eu me for
vais-te tornar um bajoujo.” Eu ria-me da parvoíce para te descansar e
por dentro sentia um arrepio de fazer tremer o mundo. Eu sabia que
tinhas razão. Estás sempre certa, ouviste? É incrível que até depois de
me deixares continuas a estar certa.
Eu estava habituado a ouvir-te
perguntar “tens fome amor?” mal me ouvias fechar a porta, e eu tinha
sempre fome. Depois dobravas a minha roupa impecavelmente e deixavas os
sapatos aos pés da
cama. Todos os dias. Desculpa, enganei-me, eu não
estava habituado porque o hábito tem a tendência a matar o encanto e o
amor. Eu vivia era encantado a olhar para ti. É importante que saibas
isso. Nos quarenta e cinco anos em que te amei, não houve no meu corpo
um único segundo de dúvida ou de desamor, o amor todos os dias crescia…
Todos os dias cresce. A criançada achava que eu estava preparado para
isto. As pessoas acham que com o tempo e a velhice deixamos de amar e
passamos só a ser bons companheiros. Nós nunca fomos assim. Sempre te
desejei, só a ti. O meu corpo tremia como primeiro dia, sempre que te
sentavas na cama e tiravas o colar do pescoço para te deitares perto de
mim. Cheiravas a amêndoas, será que ainda cheiras a amêndoas aí em cima?
Tenho a certeza de que sim, às vezes quando chove sinto que ainda
cheira amêndoas. Olho para o céu e rio-me. “Lá estás tu a fazer das
tuas”. Nunca me senti menos sortudo. Sempre que chegava a casa e te via a
cozinhar, ficava perdido na linha que vai do teu ombro ao teu pescoço…
Como é possível Deus ter feito uma coisa tão perfeita e ainda haver
gente que não tem fé? A paz cabia nas tuas mãos e ainda havia espaço
para mim.
Agora vou-me deitar, espero que tenhas a decência de me
levar contigo… Se não for hoje, que seja depressa. Se não for hoje que
desças ao menos para dançarmos a última valsa, traz o vestido das
bolinhas que eu adoro e que tu dizes que te faz as ancas largas. Mal
sabes tu que és a coisa mais bonita da minha vida.
Minha Maria, tenho um nó na garganta e um nó mal feito na gravata, que bajoujo que eu sou sem ti."
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